Gravações com câmeras individuais em policiais gera outros problemas no processo penal

Capítulo escrito pelo sócio Luiz Eduardo Cani para o livro em homenagem ao Professor Luiz Flavio Gomes, publicado pela JusPodivm.

Por Alexandre Morais da Rosa e Luiz Eduardo Cani

I – Introdução.

A relação de Luiz Flávio Gomes com os autores é diferenciada. Enquanto Luiz Eduardo era seu leitor, Alexandre conviveu, foi professor convidado de Luiz e de Alice, durante muito tempo. Mais de 20 anos de convivência, aulas online e presenciais, sem contar os jantares no restaurante Arábia que ele tanto adorava, na Haddock Lobo, em São Paulo. Foram muitas noites em que a delicadeza em jantar pessoalmente e com papo avante ao seu tempo. Com divergências e convergências, sempre se manteve o respeito intelectual e disposição para o diálogo. Além disso, Alice fez com que se pudesse manter os vínculos, carinho que se sustenta por pequenos detalhes de uma vida acelerada, mas que não se nega a regar a amizade dos seus. Nossa homenagem, então, vai por uma convivência que renova os desafios da vida, do amor e da esperança.

Na justa homenagem que se faz, então, decidimos tocar em tema pouco explorado ainda no ambiente do processo penal, consistente no uso de câmeras pelos agentes da lei, incrementando cognitivamente o material probatório disponível à verificação da responsabilidade penal dos arguidos/acusados.

II – Os atos administrativos na esfera de restrição da liberdade têm presunção de ilegitimidade: a herança da advertência de Miranda no contexto do Processo Penal.

Se a liberdade é o pressuposto, toda restrição de Direitos Fundamentais na esfera penal deve ter a presunção de ilegalidade. Confunde-se a presunção de legitimidade do ato administrativo com a legitimidade dos atos de restrição de Direitos Fundamentais. Isso porque, no contexto brasileiro, de mentalidade autoritária[1], parte-se da legitimidade dos atos administrativos tendentes à apuração de infrações penais, contaminando as fases posteriores. Os atributos dos atos administrativos não se confundem com a intervenção do agente da lei em face da tutela da liberdade, justamente porque o ônus probatório (carga probatória) exige que o Estado demonstre passo a passo a regularidade da intervenção na esfera privada do sujeito[2]. Longe de se presumir a prisão como legal, deveria acontecer justamente o inverso. A legitimidade da intervenção na vida, propriedade e liberdade dos sujeitos deve ser comprovada – pelo Estado – no decorrer do procedimento/processo de apuração da responsabilidade penal.

É preciso perceber a dimensão da cláusula do devido processo legal, especialmente o qualificado de substantivo, construída em mais de 800 anos (substantive due process of law)[3]. Cabe dizer que a imposição de cartas aos Reis na Inglaterra – mesmo não se confundindo com a noção moderna de Lei – foi o nascedouro do reconhecimento de que os direitos do soberano não eram mais absolutos, a saber, o Rei também se submetia ao regime universal e seu poder não era mais plenipotenciário. A Terceira Carta Confirmatória de Henrique III preconizou: “Nenhum homem livre será detido ou aprisionado ou despojado de seus meios de vida, de suas liberdades, nem de suas usanças livres, nem banido ou exilado, nem de modo algum molestado, e nós também não o atacaremos nem mandaremos alguém atacá-lo, exceto pelo lícito julgamento de seus pares ou pelo direito da terra.”[4] No ano de 1610, durante o reinado de Jaime I, Sir Edward Coke já indicava a importância, na linha de Locke[5] e sua tríade, ou seja, da garantia da vida, propriedade e liberdade. Aliás, o pensamento contratualista de Locke será fundamental para se compreender que o contrato social não significou a alienação dos direitos inerentes ao sujeito, mas o contrário[6]. Há um resto de liberdade pressuposto da intervenção estatal, a qual não foi, nem pode ser alienada. É justamente a partir dessa tríade – vida, propriedade e liberdade – que se deve buscar a matriz do significante[7]. Mesmo sendo incerta, na doutrina, a recepção do devido processo legal nos EUA, pode-se dizer que a supremacia da Constituição é noção que fundamenta a possibilidade de controle de constitucionalidade. A Constituição de 1791 estabeleceu na 5a Emenda: “Nenhuma pessoa pode ser obrigada a responder por um crime capital ou infamante, salvo por denúncia ou pronúncia de um Grande Júri, exceto em casos que surjam nas forças terrestres ou navais, ou na milícia, quando em serviço ou em tempo de guerra ou de perigo público. Nem se pode sujeitar qualquer pessoa, pelo mesmo crime, a ser submetida duas vezes a julgamento que lhe possa causar a perda da vida ou dano físico; nem será obrigada de forma alguma a depor contra si mesma, nem será privada de sua vida, liberdade ou propriedade, sem o devido processo legal; nem pode uma propriedade privada ser tomada para uso público sem justa compensação”. Aponta-se que o trajeto não foi o de acolhimento do mérito do produto legislativo. A noção de Lei foi revisitada pelo reconhecimento do direito dos Tribunais de controlar a razoabilidade dos atos do poder público (legislativo e executivo), quando violadores dos direitos de vida, propriedade e liberdade[8], com a extensão da 5a Emenda aos Estados Membros, pela 14a Emenda: “Seção 1. Todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos, e sujeitas à sua jurisdição, são cidadãos dos Estados Unidos e do Estado no qual residem. Nenhum Estado deve editar ou executar qualquer lei que possa violar os privilégios e imunidades dos cidadãos dos Estados Unidos. Nem pode qualquer Estado privar nenhuma pessoa da vida, liberdade ou propriedade sem o devido processo legal; nem recusar a qualquer pessoa na sua jurisdição a igual proteção perante a lei. (…) Seção 5. O Congresso deve ter poderes para reforçar, por legislação apropriada, as provisões deste artigo”. Reconheceu-se, com isso, a possibilidade de intervenção do Judiciário Federal nas legislações Estaduais, sob a perspectiva de proteção da vida, liberdade e propriedade.

Feito esse percurso, a cláusula do devido processo legal, na tutela da liberdade, exige à regularidade do flagrante a efetiva “Advertência de Miranda”, já que todos os atos devem ser comprovados pelo Estado[9] e não presumidos. Dito diretamente: os atos são presumivelmente ilegais. Assim, como nos Estados Unidos, os atos estatais de prisão devem receber, prima facie, a presunção de ilicitude[10], podendo ser derrotada pela comprovação da regularidade. Não é o conduzido quem deve comprovar que seus direitos e garantias não foram efetivados, mas o Estado promover meios (gravação, testemunhas etc.) capazes de demonstrar o procedimento escorreito, sob pena de ‘perda de uma chance’. Esse giro de compreensão, da pressuposta legitimidade dos atos para a presunção de ilicitude, é um passo para efetivação do devido processo legal substancial, especialmente na audiência de custódia.

 

III – A perda de uma chance probatória.

A presunção de inocência (regra de tratamento, probatória e julgamento), embora com alguns antecedentes históricos, encontrou reconhecimento na Declaração dos Direitos do Homem, em 1789, seu marco ocidental, segundo o qual se presume a inocência do acusado até prova em contrário reconhecida em sentença condenatória definitiva.[11] Nesse sentido, a Constituição da República – CR, em seu art. 5o, inciso LVII, dispôs: Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”[12]. Com isso, toda prova possível de ser produzida não pode ser dispensada[13].

A regularidade das circunstâncias da prisão – exceção à liberdade – deve ser comprovada pelo Estado e não o contrário. Daí que a constante filmagem das ações policiais poderia colaborar tanto para verificação da legalidade da prisão, bem assim evitar a alegação de tortura e/ou maus tratos. A mentalidade autoritária que permeia a corporação policial, diante da plena possibilidade tecnológica, deve inverter a lógica, ou seja, a prisão é ilegal até a comprovação da observância da normativa. Para comprovação da situação de flagrante, câmeras de segurança, artefatos tecnológicos, filmagens dos próprios agentes da lei são necessárias quando possíveis. Se cada policial dispõe de câmera e pode filmar a operação, em caso de dúvida, deve prevalecer a doutrina da perda de uma chance, por parte do Estado. Todo ato de investigação é necessário, ainda mais quando se pode manipular as narrativas.

Compete ao Estado acusador a carga probatória de comprovar a conduta diante da presunção de inocência. A pergunta que é feita aqui é: mas quando do caso imputado, especialmente da apuração preliminar ou flagrante, existir a real possibilidade de esclarecimento por parte dos agentes estatais em produzir todas as provas (depoimentos, filmagens etc.), isso repercute na formação da culpa? Para responder a essa pergunta, além da consideração sobre dúvida razoável, cabe invocar aqui, com a respectiva adaptação, a lógica da denominada “Teoria da Perda de Uma Chance”, própria do Direito Civil, justamente para se analisar os modos de absolvição em face da plena possibilidade e omissão de elementos probatórios por parte do Estado[14]. Isso porque, em um processo democrático, não pode o acusador se dar por satisfeito na produção da prova do e pelo Estado, eximindo-se das demais possíveis, até porque não se trata mais de verdade real, mas de verdade produzida no jogo processual. Claro que a teoria não pode ser trazida como “espelhinho” teórico, demandando a respectiva aproximação adequada, a partir da noção de processo penal como jogo.

Rafael Peteffi da Silva discorre sobre a “Teoria da perda de uma chance”, apontando que se trata de processo aleatório que foi interrompido pelo ato do agente estatal e que, ao final, poderia significar uma vantagem, uma aposta perdida[15]. No caso judicial, a apuração da responsabilidade está em curso e somente com sentença poderá se ter a responsabilidade penal, sendo que diante das obrigações do Estado em “colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e suas circunstâncias” (CPP, art. 6º, III), a omissão Estatal, por seus agentes, em obter ou produzir todas as provas possíveis para configuração da infração penal implica na perda, a depender do caso, da aposta na inocência. Até porque o acusado não pode produzir elementos probatórios na investigação preliminar, senão sugerir (CPP, art. 14), além de os agentes públicos disporem de meios hábeis e disponíveis, como câmeras para filmar toda a ação, mas que não são utilizados por conveniência e falta de atitude democrática.

Não se pode negar que o arguido pode ser condenado com a prova já existente nos autos, mas também não é menos verdade que a produção das outras provas possíveis (periciais, depoimentos, filmagens etc.), carga probatória sempre da acusação, poderia enfraquecer ou mesmo levar à absolvição. No campo do Processo Penal, pois, a ideia que preside é a da acumulação de elementos de convicção por parte da acusação. Em uma frase: toda prova é necessária e nada relevante é dispensável. O arguido perdeu a chance, com a não produção (desistência, não requerimento, inviabilidade, ausência de produção no momento do fato etc.) de que sua expectativa de absolvição fosse destruída de boa-fé. Logo, a apuração deve ser feita em cada caso[16], em face das peculiaridades específicas, não se tratando de mero juízo de possibilidade e sim de probabilidade[17] de que existam elementos probatórios relevantes para formação da culpa e que não foram amealhados por omissão (dolosa ou culposa) por parte dos agentes Estatais.

Feita essa aproximação, cabe dizer que é cada vez mais comum, especialmente pela chancela do Poder Judiciário, que as condenações ocorram exclusivamente com base na palavra dos policiais. E isso significa, em síntese, que não se possui mais nada a fazer no processo em contraditório. Confirma-se o que se disse no flagrante ou no inquérito policial. E isso é pouco democrático porque havia chances de se produzir provas para além dos agentes estatais. Nos casos de tráfico, a questão beira ao paroxismo. De regra, as provas da condenação advêm somente dos depoimentos dos policiais e não encontram guarida no restante do acervo probatório. Muitas vezes, os policiais afirmam que a abordagem se deu logo após observarem a venda para um usuário de droga, mas nenhum possível comprador de droga é identificado ou presta declaração, nem é conduzido à autoridade policial. Consequentemente, dito usuário jamais será ouvido em juízo. Nem sequer quando a venda ocorre em veículos, as placas dos tais compradores são anotadas. Assim, os agentes de segurança pública deixam de colher prova potencialmente isenta, não por ausência de possibilidade de produção da prova mais adequada, mas sim pela cômoda adoção da lei do menor esforço e pela confiança na atribuição de alta confiabilidade aos seus próprios relatos.

Estamos em 2020, tempos em que a tecnologia facilita as filmagens – aliás, os policiais, depois das jornadas de protestos de 2013, receberam câmeras para serem colocadas nas fardas – e não se justifica a manutenção do modelo medieval de produção probatória testemunhal. E é o que se faz quando se confere alto valor probatório aos testemunhos de policiais, dando-lhes capacidade de, per se, embasarem uma condenação: o próprio agente público finda por “se transformar na prova” quando, na realidade, sua função precípua é a de angariar elementos probatórios. Logo, resta enfraquecida a prova pela omissão estatal em que a única presunção acolhida, a de inocência, deve prevalecer.

É possível a filmagem de toda a ação; investigações anteriores; condução dos usuários por porte etc. Mas nada disso é produzido. A acusação se restringe a produzir (repetir) em juízo os depoimentos dos policiais. Nesse contexto, ainda que os depoimentos dos policiais não sejam inválidos, cabe indagar se o Estado-polícia, acusador e juiz, não deve exigir a produção de todas as provas possíveis, sob pena de flexionar a presunção de inocência, pressuposta, em nome da facilidade da condenação, fazendo com que o acusado perca a chance de questionar a consistência e coerência de todas as provas. Não se trata de quimera. Mas de condenação criminal e, no caso de tráfico, de tipo penal com pena de cinco anos (Lei 11.343/06, art. 33, caput). Não é coerente, por exemplo, aceitar como suficiente o relato prestado por policiais no sentido de que viram o acusado praticando o crime de tráfico de droga, quando havia possibilidade de os mesmos agentes, no estrito cumprimento do dever legal, colherem informações de terceiros para justificar a prisão em flagrante e solidificar a prova judicial. Proceder assim é atentar contra a qualidade da prova e deslegitimar eventual decisão condenatória, porque obviamente não foram esgotadas — e por culpa do próprio Estado — as formas de averiguação do fato imputado.

IV – A tecnologia que monitora e a cessão de câmeras às polícias: realidade e omissão. Perder a chance de produzir prova por que?

O incremento das medidas de segurança tem sido cada vez mais impulsionado por meio dos novos dispositivos técnicos. Esse fenômeno se dá a pretexto de prevenir crimes, num contexto de elevação constante dos riscos cotidianos[18]. Dentre essas medidas, está o uso de câmeras de vigilância em ruas, edifícios, veículos e até nas pessoas[19].

A proliferação do monitoramento é justificada tanto a pretexto de prevenir a criminalidade, quanto para qualificar a prova produzida[20]. Daí porque, nos últimos anos, tornou-se comum a introdução de câmeras de vigilância também em viaturas policiais para gravar as ocorrências.

Porém, em razão da impossibilidade de todas as abordagens policiais serem filmadas pelas câmeras veiculares, por conta de perseguições calcorreantes, cumprimentos de mandados em locais fechados ou distantes das viaturas etc, adotou-se também outra medida de segurança: o acoplamento de câmeras individuais aos trajes dos policiais.

Nesse sentido, o Estado de Santa Catarina, e.g., adquiriu 2.425 câmeras individuais, que serão utilizadas por pelo menos um policial em cada viatura, a fim de gravar as operações em alta definição[21].

Com efeito, diante deste cenário, exsurgem diversos questionamentos relacionados à sociedade do risco, às medidas de prevenção de riscos, às justificativas do estado de exceção, aos rumos da segurança pública etc. Não se pode olvidar, contudo, um efeito importante decorrente desta medida, que nos parece ficar encoberto por essas discussões: as consequências processuais da introdução de câmeras individuais.

Como consta na justificação do investimento: a finalidade é prender melhor, o que pode significar tanto dar maior credibilidade às provas, quanto evitar ilegalidades. Nesse sentido, o uso das câmeras pode complementar as atribuições policiais, de modo a oferecer maior credibilidade aos depoimentos dos policiais. Por outro lado, é certo que a medida reduzirá as chances de absolvição. O aspecto que parece mais preocupante é: o que deve fazer o julgador quando não existir gravação, a gravação for incompleta ou houver dúvida sobre a legalidade dos atos dos policiais?

A teoria tradicional está assentada na discussão sobre a fé pública dos agentes estatais, de modo que se deve inverter a lógica de presunção dos atos dos policiais. No terreno do processo penal, a fé pública não encontra amparo, pois estabelece uma presunção de veracidade dos atos administrativos. No entanto, o núcleo do processo penal brasileiro está assentado na presunção de inocência, no contraditório, na ampla defesa, na jurisdicionalidade, na motivação das decisões judiciais e na gestão da prova ser atribuição exclusiva da acusação[22].

O princípio constitucional da presunção de inocência, justamente porque estabelece a consequência jurídica das dúvidas, impõe o afastamento da presunção de legitimidade – própria dos atos administrativos – aos atos praticados pelos agentes policiais em matéria penal. É dizer: a fé pública é incompatível com o processo penal. Não fosse assim, sequer seria necessário adquirir câmeras individuais para gravação dos atos administrativos dos policiais, pois a fé pública bastaria. Essa conclusão é absurda, principalmente, por ser o Brasil um dos países maior taxa de letalidade policial do mundo[23].

A discussão sobre a consequência jurídica das dúvidas decorrentes da atividade probatória da acusação recebe novos contornos a partir do significante chamado cadeia de custódia, um registro dos meios de prova manuseados por policiais, peritos e outros responsáveis pela coleta, armazenamento, preservação, análise e apresentação dos meios de prova. Existe, precipuamente, para preservar as informações sobre provas produzidas fora do processo, portanto, sem possibilidade de contraditório simultâneo.

Os princípios da cadeia de custódia, ensina Geraldo Prado, são a mesmidade e a desconfiança[24]. A primeira garante que o material analisado é o mesmo obtido, sem contaminações. Já a segunda impõe o registro de todas as ações perpetradas para dar credibilidade à prova, do contrário, a desconfiança prevalece.

No caso específico do depoimento pessoal, a gravação serve para validar a veracidade dos depoimentos e a licitude da coleta das informações, que são adquiridas fora do processo, restrita aos limites do cross-examination: boa-fé do depoente nas respostas; boa-fé do acusador na atuação de modo a não fazer perguntas capciosas e a dar conhecimento dos elementos que tem contra o arguido (disclosure); conhecimento do advogado acerca das circunstâncias em que os fatos ocorreram; e imparcialidade do julgador[25] Eis, pois, a importância da discussão acerca da cadeia de custódia.

A inserção dessa nova técnica oferece novos contornos ao que se entende por publicidade. Com efeito, as gravações das atividades policiais devem ser analisadas no âmbito da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD – Lei. 13.709/18). As imagens não devem ser divulgadas, pois expõem a intimidade dos policiais, dos abordados e de terceiros, justamente porque a LGPD autoriza o uso de imagens para Segurança Pública (art. 4, III, “a” e “d”) dentro do contexto de processos e investigações policias, jamais para compartilhamento privado (v.g. WhatsApp, Telegram, etc), nos termos do § 1º, do art. 4º (O tratamento de dados pessoais previsto no inciso III será regido por legislação específica, que deverá prever medidas proporcionais e estritamente necessárias ao atendimento do interesse público, observados o devido processo legal, os princípios gerais de proteção e os direitos do titular previstos nesta Lei), isso porque os dados pessoais e/ou sensíveis (art. 5º, I e II) não podem ser manipulados fora do ambiente e sistemas estatais[26]. Outrossim, em relação aos arguidos, impera a presunção de inocência, sendo o principal limite à divulgação dos arquivos gravados, de modo a impedir a exposição de pessoa não condenada em definitivo[27].

O raciocínio do parágrafo anterior parece indicar uma contradição: se é público, por que não divulgar? A publicidade do ato dos agentes públicos deve estar circunscrita aos envolvidos e às autoridades responsáveis pelo controle da atividade policial: arguidos, abordados, terceiros envolvidos/gravados, policiais, chefes de polícia (oficiais da PM, delegados da PC ou PF, inspetores da PRF), membros do Ministério Público responsáveis pelo controle externo da atividade policial e juízes competentes para julgar quaisquer processos cíveis, criminais e/ou administrativos no quais as gravações sejam necessárias. Cumpre observarmos que, neste caso, cada um deles pode ser responsabilizado pelo tratamento dos dados pessoais (art. 5º, X, c/c arts. 42-45, da LGPD).

Outro aspecto problemático decorre da gravação. O processo penal não pode ser mero espaço para exibição de gravações. A oralidade precisa ser levada a sério. Aqui não se faz referência à vulgata brasileira: mera leitura dos atos de investigação na fase judicial. Oralidade é a realização de todos os atos processuais oralmente, com possibilidade de efetivo exercício do contraditório, característica central em um processo penal acusatório[28]. Ademais, a cadeia de custódia deveria ser verificada em uma audiência destinada ao juízo de admissibilidade da acusação e ao juízo de admissibilidade e relevância das provas, assim como ocorre no Chile[29].

Observados esses aspectos, excepcionalmente, terceiros podem ter acesso à gravação para utilizar como provas, desde que, no processo penal, não seja exibida como prova incriminadora de modo a burlar à oralidade.

Por isso é que se afirma: a destruição do estado constitucional de inocência do acusado não pode se dar unicamente pela prova produzida contra ele pelo Estado, através de seus agentes, dado que é dificilmente refutável, a se considerar a realidade dos casos, nos quais não raro a única defesa do acusado será sua própria palavra, especialmente quando está preso – para a qual se dá pouca confiabilidade na jurisprudência –, em face da narrativa dos policiais. Dever-se-á, assim, sempre exigir “comprovação externa”, a cargo dos próprios agentes públicos quando do cumprimento das diligências, claro, dentro da razoabilidade, já que nem todas as condutas possibilitam a ampla produção probatória. A demonstração da impossibilidade compete ao Estado, até porque seus atos são presumidamente inválidos. Ademais, reforça-se que não é papel do acusado provar sua inocência, já que a carga probatória é do acusador, a quem incumbe demonstrar, de maneira inequívoca, na hipótese de tráfico, por exemplo, que a droga apreendida era de fato destinada à comercialização e, mais do que isso, que o acusado possuía relação com a droga apreendida. O dano decorrente da condenação, mesmo ausente a produção de toda prova possível, implica no reconhecimento da modulação, invertida, da Teoria da Perda de uma Chance, no Processo Penal, como modalidade de doping.

A perda da chance de que todas as provas contra si sejam produzidas implica em uma perda irreparável, sem possibilidade de produção pela parte contrária, lembrando-se, ainda, que o acusado nada deve provar. Dito de outra forma: o Estado não pode perder a chance de produzir todas as provas (CPP, art. 6º, III) contra o acusado em nome da eficiência. Todas as provas possíveis se constituem como preceitos do devido processo substancial, já que a vida e a liberdade do sujeito estão em jogo. Deve, portanto, exigir-se a justificativa plausível para que tenha se perdido a chance de produzir prova material, além da testemunhal, pelos agentes estatais. Não basta ausência de condições tecnológicas, pois essas são possíveis e não realizadas pelo próprio Estado. Há a perda de uma chance para defesa pela ausência de prova possível e factível da acusação, a ser apurada em cada caso. Por sua omissão, o Estado ceifa a possibilidade de comprovação mais substancial e impede a perfeita configuração da ação típica, instaurando a dúvida razoável por sua conduta omissiva.

Não se trata de dano hipotético ou eventual, mas sério e real à liberdade de alguém acusado. A perda da chance probatória, por parte do Estado acusação, gera o nexo de causalidade com a fragilidade da prova que poderia ser produzida e, com isso, diante da omissão estatal, pode-se aquilatar, no caso concreto, os efeitos dessa ausência[30]. Dado que a única presunção constitucionalmente reconhecida é a presunção de inocência, não sendo produzida toda prova capaz de corroborar a palavra isolada dos policiais, em muitos casos, a condenação será abusiva, ainda mais quando disponíveis, em pleno ano 2020, meios tecnológicos hábeis (utilizados amplamente por forças policiais em diversos países). Não se está duvidando da palavra dos policiais e sim confirmando que, a priori, peso diferenciado é próprio de regimes autoritários. O que se reconhece é que a condenação de alguém, em uma Democracia, exige a produção de todos os elementos probatórios disponíveis. Sem eles, havendo dúvida razoável, a absolvição é o único caminho.

Sabe-se que a condenação exige prova para além da dúvida razoável e, havendo a perda da chance de produção de toda a prova por parte do Estado, plenamente factível, nos dias atuais, em face dos avanços tecnológicos, principalmente, a absolvição é medida que se impõe. A Teoria da Perda de uma Chance, assim, pode ser invocada no processo penal[31] para o fim de justificar teoricamente a absolvição pela falta de todas as provas possíveis, não apuradas, não produzidas, mas factíveis, prevalecendo a presunção de inocência (TRF, 4º Região, Apcrim 0001857-29.2010.404.7002).

 

V – Considerações Finais

Por tudo isso, entende-se que: (a) as câmeras individuais devem ser ligadas para gravar as abordagens policiais, sob pena de perda de chance probatória; (b) as gravações servem para assegurar a publicidade dos atos dos agentes públicos; (c) publicidade não é autorização para divulgação dos arquivos gravados, nos termos da Lei Geral de Proteção de Dados; (d) o conteúdo deve ser divulgado apenas aos arguidos, abordados, policiais que realizaram as abordagens, terceiros envolvidos, chefes de polícia, membros do MP que atuam no controle externo da atividade policial e juízes naturais; (e) excepcionalmente terceiros podem usar os arquivos como prova cível, administrativa ou criminal, desde que não sirva para condenar sem oralidade; (f) a cadeia de custódia da prova é garantia da licitude da prova, sem a qual a presunção de inocência deve servir para inadmitir a prova diante da presunção de ilicitude; (g) no caso específico dos depoimentos dos policiais, as gravações servem para provar que as informações narradas nos depoimentos existiram e foram obtidas licitamente; (h) verificada a integridade da cadeia de custódia, os depoimentos dos policiais devem ser admitidos, mas as gravações não são provas do caso, apenas da licitude das provas, de modo que o julgador não deve valorar as gravações e nem visualizá-las; (i) toda a reconstrução do caso deve ser feita oralmente, sem a exibição das gravações; (j) não produzida, não juntada, mas possível a gravação, aplica-se a perda de uma chance probatória, militando em favor da presunção de inocência.

[1] MALAN, Diogo. Ideologia política de Francisco Campos: influência na legislação processual brasileira. In: PRADO, Geraldo; MALAN, Diogo (Orgs.). Autoritarismo e Processo Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015, p. 1-86; SULOCKI, Victória Amália de Barros Carvalho Gozdawa de. Autoritarismos presentes: biopolítica, estado de exceção e poder soberano. In: PRADO, Geraldo; MALAN, Diogo (Orgs.). Autoritarismo e Processo Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015, p. 87-127; VALOIS, Luís Carlos. O direito penal da guerra às drogas. Belo Horizonte: DePlácido, 2016.

[2] GOMES, Luiz Flavio. Sobre o conteúdo processual tridimensional do princípio da presunção de inocência. Revista dos Tribunais, v. 729, p. 377, 1996, p. 377: “o princípio da presunção de inocência, que é instituto de direito preponderantemente processual, como regra probatória, possui íntima conexão com três princípios (limitadores) pertencentes ao Direito Penal, que são: (a) princípio do fato (Direito Penal do Fato), (b) princípio do nullum crimen sine iniuria (Direito Penal da lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico) e (c) princípio da imputação pessoal ou subjetiva (Direito Penal da Culpa). Desde logo impõe-se salientar que de inúmeras formas pode-se violar cada um deles (que configuram limites à intervenção penal estatal) e, em razão do vínculo que possuem, concomitantemente a presunção de inocência, como regra probatória. Vejamos: viola-se o princípio do fato (e também a presunção de inocência) quando o legislador presume, contra o réu, certos fatos (art. 224 do CP (LGL\1940\2), por exemplo); viola-se o princípio do nullum crimen sine iniuria (e também a presunção de inocência) quando o legislador presume a lesão ou o perigo ao bem jurídico (perigo presumido, tal como o do art. 32 da LCP (LGL\1941\7)); viola-se o princípio da responsabilidade pessoal ou subjetiva (e também a presunção de inocência) quando o legislador presume a participação de determinadas pessoas num específico crime (art. 95, § 3.º, da Lei 8.212/91). De outro lado, pode-se violar ainda o princípio da presunção de inocência invertendo-se o ônus da prova (tal como se dá no art. 25 da LCP (LGL\1941\7)).”

[3] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. 6. ed. Florianópolis: EMais, 2020, p. 323-328 e 365-367. Uma versão ampliada está contida no livro referido.

[4] MARTEL, Letícia de Campos Velho. Devido Processo Legal Substantivo: razão abstrata, Função e Características de Aplicabilidade: a linha decisória da Suprema Corte Estadunidense. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 6.

[5] LOCKE, John. Ensaio acerca do entendimento humano. Trad. Anoar Aiex. São Paulo: Abril, 1973.

[6] STRECK, Lenio Luiz; BOLZAN DE MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência Política e Teoria do Estado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. CRUZ, Paulo Márcio. Política, Poder, Ideologia & Estado Contemporâneo. Curitiba: Juruá, 2002.

[7] MARTEL, Letícia de Campos Velho. Devido Processo Legal Substantivo: razão abstrata, Função e Características de Aplicabilidade: a linha decisória da Suprema Corte Estadunidense. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 24: O ‘Bonham case’ foi marcado pelo reconhecimento da nulidade do ato que aplicou a multa e prisão em face do exercício ilegal da medicina em Londres sem autorização da Academia Real de Medicina. “Os censores não podem ser juízes, ministros e partes; juízes para proferir sentença e julgar; ministros para fazer notificações ou intimações e parte para terem metade das multas, quia aliquis non debet esse judex in propria causa, imo iniquun este alequem suas rei esse judicem; e ninguém pode ser juiz e advogado para qualquer das partes (…) e consta dos nossos livros que, em muitos casos, o direito comum controlará aos do parlamento, e, às vezes, julgá-los-á absolutamente nulos, pois quando um ato do parlamento vai de encontro ao direito comum e à razão, ou é inaceitável ou impossível de executar, o direito comum irá controlá-lo e julgá-lo como nulo.”

[8] MARTEL, Letícia de Campos Velho. Devido Processo Legal Substantivo: razão abstrata, Função e Características de Aplicabilidade: a linha decisória da Suprema Corte Estadunidense. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 63. Sobre o “Stamp Act”, o juiz Edmundo Pendlton, de Virgínia, afirmou: “Tendo feito o juramento de julgar de acordo com a LEI, jamais poderei considerar esta lei como tal, por carência de poder no Parlamento para aprová-la”.

[9] CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 75; MELCHIOR, Antonio Pedro. Direito à prova defensiva e os limites à discricionariedade do julgador: a problemática do poder no processo penal democrático. In: PRADO, Geraldo; CHOURK, Ana Claudia Ferigato; JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. Processo penal e garantias: estudos em homenagem ao professo Fauzi Hassan Chourkr. Florianópolis: Empório do Direito, 2016, p. 136: “A desconfiança no exercício do poder punitivo é, portanto, o reflexo do abismo entre as práticas penais e a expectativa democrática”.

[10]  RAMOS, João Gualberto Garcez. Curso de processo penal norte-americano. São Paulo: RT, 2006, p. 137-138: “Nessa decisão [Miranda vs Arizona], a Suprema Corte estabeleceu a inversão das presunções em matéria de confissão do imputado preso. Antes valia a presunção de que os atos administrativos praticados pelos agentes de polícia eram justos e legítimos e cabia ao imputado comprovar o contrário. A partir da decisão, as declarações feitas pelo imputado preso na polícia são consideradas, prima facie, obtidas mediante coerção ou por meio da colocação do imputado diante do trilema cruel (cruel trilemma): ‘permanecer em silêncio e encarar a prisão; falar a verdade e encarar a prisão; ou mentir e encarar a prisão, dessa vez por perjúrio.’ (Saltzburg, Capra)”.

[11]  FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón. Teoría del garantismo penal. Trad. Perfecto Andrés Ibáñez et. all. Madrid: Trotta, 2001, p. 549-551; STEINER, Sylvia Helena de Figueiredo. A Convenção americana sobre direitos humanos e sua integração ao processo penal brasileiro. São Paulo: Revista dos Tibunais, 2000; GRANDINETTI, Luis Gustavo; CARVALHO, Castanho de. Processo penal e (em face da) constituição: princípios constitucionais do processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.

[12] GOMES, Luiz Flavio. Sobre o conteúdo processual tridimensional do princípio da presunção de inocência. Revista dos Tribunais, v. 729, p. 377, 1996, p. 377: “Só resta considerar que a expressão presunção (quando da presunção de inocência estamos a falar) está sendo utilizada em sentido vulgar, não técnico. Sob esse enfoque, a presunção de inocência é a expressão de uma valoração feita pelo Legislador Constituinte (frente ao acusado da prática de um ilícito) que se decidiu por uma de duas proposições possíveis (ser inocente ou culpado), sem ter certeza absoluta de que se decidiu pela proposição correta. Todo ordenamento jurídico (e particularmente suas concretas proposições normativas) ou parte da presunção de que o acusado é inocente (o ônus da prova da culpabilidade nesse caso pertence a quem faz a acusação) ou, anomalamente, parte de presunção oposta (quando então o ônus da prova da inocência compete ao acusado). Tertium non datur. O nosso, pelo que já ficou assentado, insere-se, em nível constitucional, no primeiro grupo. Mas isso não significa que dispositivos jurídicos infraconstitucionais concretos, emanados de legisladores que atuaram sob o império de outra realidade histórica e política, estejam em posição aporética frente ao ponto de partida assinalado. E sempre que isso ocorre, é evidente que se deve preservar o Texto Maior.”

[13] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. 6. ed. Florianópolis: EMais, 2020, p. 683-687. Uma versão ampliada está contida no livro referido.

[14]  MORAIS DA ROSA, Alexandre; RUDOLFO, Fernanda Mambrini. A teoria da perda de uma chance probatória aplicada ao processo penal. Revista Brasileira de Direito. https://seer.imed.edu.br/index.php/revistadedireito/article/view/2095; SILVA, Franciele da. A Teoria da Perda de uma chance aplicada ao Processo Penal. Florianópolis: UFSC (Monografia – Direito), 2018; COSTA, Guilherme Recena. Livre convencimento e standards de prova. In: YARSHELL, Flávio Luiz; ZUFELATO, Camilo (Coords.). 40 anos da teoria geral do processo no Brasil: passado, presente e futuro. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 367-368: “A afirmação pode ser aclarada quando se pensa no processo penal. Parece-nos hoje intuitivo e de senso comum que será preferível absolver muitos culpados a condenar um inocente. O correlato princípio da presunção de inocência, a que se vincula a noção de prova além da dúvida razoável (proof beyond reasonable doubt), é, assim, uma ‘escolha fundamental de caráter ético’. O processo penal revela-se, nessa medida, assimétrico quanto ao valor atribuído ao conteúdo da verdade de suas decisões: não se preocupa em minimizar a quantidade de erros fáticos em geral, mas em evitar, com grande energia, um tipo de erro específico: a condenação injusta (um falso positivo)”.

[15]  PETEFFI SILVA, Rafael. Responsabilidade Civil pela Perda de uma Chance. São Paulo: Atlas, 2013. “Na lição de François Chabas, existem algumas características principais: a vítima deve estar em um processo aleatório, que foi interrompido pelo ato do agente e que ao final poderia lhe representar uma vantagem. Assim, pode-se afirmar que há uma ‘aposta’ perdida (essa aposta é uma possibilidade de ganho, é a vantagem que a vítima esperava auferir – como a procedência da demanda judicial e a obtenção do primeiro prêmio da corrida de cavalos – que normalmente pode ser enquadrada dentro da categoria de lucros cessantes) e uma total falta de prova do vínculo causal entre a perda dessa vantagem esperada e o ato danoso, pois essa aposta é aleatória por natureza”.

[16]  PETEFFI SILVA, Rafael. Responsabilidade Civil pela Perda de uma Chance. São Paulo: Atlas, 2013. “A observação da seriedade e da realidade das chances perdidas é o critério mais utilizado pelos tribunais para separar as chances potenciais e prováveis e, portanto, indenizáveis, dos danos puramente eventuais e hipotéticos, cuja reparação deve ser rechaçada. Inicialmente vale ressaltar que as chances devem ser apreciadas objetivamente, diferenciando-se das simples esperanças subjetivas (…). A verificação objetiva das chances sérias e reais é muito mais uma questão de grau do que de natureza. Assim, somente a análise dos casos concretos possibilitará ao magistrado a verificação da real seriedade das chances. No entanto, podem-se traçar algumas características gerais, que auxiliam o aplicador do direito em um discernimento mais seguro e menos casuístico sobre a eventualidade do dano”.

[17]  PETEFFI SILVA, Rafael. Responsabilidade Civil pela Perda de uma Chance. São Paulo: Atlas, 2013. “A chamada ‘Teoria da Perda da Chance’, de inspiração francesa e citada em matéria de responsabilidade civil, aplica-se aos casos em que o dano seja real, atual e certo, dentro de um juízo de probabilidade, e não de mera possibilidade, porquanto o dano potencial ou incerto, no âmbito da responsabilidade civil, em regra, não é indenizável; (…).  Como foi visto até o presente momento, a teoria da perda de uma chance é utilizada devido à impossibilidade de se saber se a ‘aposta’, isto é, o processo aleatório, apresentaria um resultado positivo”.

[18] Sobre o incremento das medidas de prevenção: PITCH, Tamar. La sociedad de la prevención. Trad. Vanina Ferreccio e Máximo Sozzo. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2009.

[19] Sobre a expansão do uso de sistemas de vigilância, bem como os abusos e absurdos decorrentes: RIGAKOS, George S.. Security/Capital: a general theory of pacification. Edimburgo: Edinburgh University Press, 2016.

[20] Daí a preocupação do homenageado Luiz Flávio Gomes com as transformações operadas no direito penal tradicional em razão das novas tecnologias: “No moderno, hipertrofiado e instrumentalizado direito penal, e sobretudo agora sob a égide da era informacional, comunicacional e globalizada, consolida-se e acentua-se (preocupantemente) uma série de transformações e agressões aos princípios clássicos da justiça penal como a intervenção mínima (fragmentariedade e subsidiariedade), legalidade, culpabilidade, necessidade, proteção preponderante de bens individuais, danosidade real da conduta (ofensividade) etc.” GOMES, Luiz Flavio. Direito penal tradicional versus “moderno e atual” direito penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 42, pp. 236-241, 2003.

[21] SANTA CATARINA. Tribunal de Justiça. Com investimento de R$ 6,2 milhões do TJ, PM implanta câmeras individuais no Estado. Disponível em: <https://www.tjsc.jus.br/web/imprensa/-/com-investimento-de-r-6-2-milhoes-do-tj-pm-implanta-cameras-individuais-no-estado?inheritRedirect=true>. Acesso em: 19 abr. 2020.

[22] Nesse sentido: LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 15. ed. São Paulo: Saraiva: 2018, p. 57-110.

[23] As informações variam desde muito letal até o mais letal do mundo: https://jconline.ne10.uol.com.br/canal/cidades/noticia/2017/04/01/policia-brasileira-e-a-que-mais-mata-e-a-que-mais-morre-276636.php, https://www.terra.com.br/noticias/brasil/policia/policia-brasileira-mata-e-morre-mais-do-que-em-outros-paises,9828b860e660a410VgnVCM20000099cceb0aRCRD.html, https://www.hrw.org/pt/news/2018/12/19/325455, https://brasil.elpais.com/brasil/2019/02/04/politica/1549309490_990004.html, https://epoca.globo.com/2018-ano-em-que-policia-matou-como-nunca-menos-policiais-morreram-no-rio-23266227.

[24] PRADO, Geraldo. Ainda sobre a “quebra da cadeia de custódia das provas”. Boletim IBCCRIM, São Paulo, v. 262, pp. 16-17, 2014, p. 17.

[25] Sobre alguns limites do cross-examination: EDMOND, Gary; CUNLIFFE, Emma; MARTIRE, Kristy; SAN ROQUE, Mehera. Forensic science evidence and the limits of cross-examination. Melbourne University Law Review, Melbourne, v. 42, n. 3, pp. 1-62, 2019.

[26] Além disso, até mesmo o uso dessas imagens no âmbito endoprocessual pode se abusivo: “A cotidianidade dos abusos – isto é, a normalização do incorreto pela abstração que o faz o senso comum – é apta a agigantar a acusação e tornar debalde, de parca utilidade, o exercício da ampla defesa. O espetáculo em torno das acusações não produz apenas o sentido de linchamento virtual do imputado, mas subtrai tempo, patrimônio e potencial de produção de um número indefinido de pessoas. A vida do usuário se paralisa em função do show apresentado televisivamente. A espera pelo desfecho é indefinida: há atrofia intelectiva e física de maneira difusa. A um só tempo, o lucro de setores específicos é incrementado, com mais-valia plúrima, com alguma relação de proporção ao prejuízo que provoca a avalanche de informações que, por sua vez, subtraem o tempo de muitos expectadores e usuários. Os recursos tecnológicos são multiplicadores de possibilidades. O pano de fundo é a maior desigualdade.” ALENCAR, Rosmar Rodrigues. A mais-valia plúrima e o processo penal inquisidor. Justificando, São Paulo, 03 jul. 2019. Disponível em: <http://www.justificando.com/2019/07/03/a-mais-valia-plurima-e-o-processo-penal-inquisidor/>.

[27] Nesse sentido: MORAES, Maurício Zanoide. Presunção de inocência no processo penal brasileiro: análise de sua estrutura normativa para a elaboração legislativa e para a decisão judicial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

[28] Sobre a oralidade: BINDER, Alberto Martín. Elogio de la audiencia oral y otros ensayos. Monterrey: Poder Judicial del Estado de Nuevo Léon, 2014; GOMES, Décio Alonso: Prova e imediação no processo penal. Salvador: JusPodivm, 2016.

[29] A audiência de preparação do juízo oral está prevista nos art. 259 a 280 do Codigo procesal penal: REPÚBLICA DO CHILE. Ley 19.696, 29 de septiembre del 2000. Disponível em: <https://www.leychile.cl/Navegar?idNorma=176595>.

[30]  NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações. V. I. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 676: “No primeiro caso poderemos falar em frustração da chance de obter uma vantagem futura, no segundo em frustração da chance de evitar um dano efetivamente acontecido (portanto, dano presente)”.

[31]  BERTONCINI, Mateus Eduardo Siqueira Nunes; TORRES, Rafael Lima. Direito Processual Penal e a Teoria da Perda de uma chance: aplicação da teoria na apreciação das provas. In: LOPES, Luciano Santos; BERTONCINI, Matheus Eduardo Siqueira; SANTIAGO, Nesto Eduardo Araruna. (Coords.). Processo Penal e Constituição. Organização CONPEDI/UFMG/FUMEC/Dom Helder Câmara. Florianópolis: CONPEDI, 2015, p. 248-263. Conferir sentença do Juiz Maurício Mortari, de Tubarão-SC: http://emporiododireito.com.br/juiz-aplica-em-sentenca-a-teoria-da-perda-de-uma-chance/ A Juíza Naiara Brancher se vale da lógica (dentre outros, Comarca de Camboriú (SC): Autos n° 0002869-83.2016.8.24.0113; Autos nº 0000018-08.2015.8.24.0113).