A tendência atual de implementação de técnicas biopolíticas de pontuação nas relações de trabalho: existem limites?

Artigo da sócia Elcemara A. Zielinski Cani, publicado no Empório do Direito.

No dia 1º de fevereiro de 2019, o El País Brasil noticiou dados alarmantes sobre as condições de trabalho decorrentes da informatização e da expansão do paradigma biopolítico de controle e vigilância dos corpos, atualizados para atingir o estilo distópico de avaliação das relações sociais em aplicativos de celular, antevisto por Michael Schur e Rashida Jones, roteiristas do episódio Nosedive, o primeiro da terceira temporada de Black Mirror:

Já existem garçons, entregadores de comida rápida, vendedores de perfumes em lojas de departamento ou instaladores de fibra ótica que perdem o emprego, ou pelo menos boa parte de sua renda, por causa da má avaliação virtual de um cliente insatisfeito ou simplesmente irritado com a empresa para a qual prestam serviço. […] Um fast-food do centro de Madri […] ao meio-dia de um dia útil na semana passada. Se alguém os observar de longe, verá que estão quase sempre com os olhos grudados em seus celulares. […] Eles prestam atenção a um aplicativo que, para eles, é muito mais diabólico do que qualquer outro. O de uma dessas empresas virtuais que, através do celular e em questão de minutos, colocam o cliente em contato com o restaurante e com o entregador que, de bicicleta ou de moto, tem a missão de levar a comida ainda quente até sua casa. ‘Olhe’, diz um dos jovens mostrando seu telefone, ‘nosso trabalho depende inteiramente da pontuação que tivermos. A empresa nos dá horas de trabalho em faixas de horário de alta demanda –por exemplo, aos sábados das 21h às 23h– em função da avaliação dos clientes que acumulamos. Se perdemos a pontuação de excelência –cerca de 97 pontos em 100– por uma má avaliação, no dia seguinte te reduzem suas horas de trabalho ou as retiram diretamente, embora na maioria dos casos não sejamos nós os culpados pela comida ter chegado tarde ou fria. Mas o aplicativo só dá a opção de avaliar os entregadores’. […] Esta é a nova imagem daqueles trabalhadores temporários que esperavam na praça da cidadezinha que o capataz –você sim, você não– os colocasse no furgão para trabalhar de sol a sol por um salário de miséria[1].

Diante desse quadro espanhol, que provavelmente não é diferente ou não está longe de ser também o quadro brasileiro, cinco observações me parecem imprescindíveis.

Primeiro, estamos diante de uma expansão da biopolítica, decorrente do aperfeiçoamento das técnicas de controle e vigilância dos corpos biológicos de indivíduos e populações.

Segundo, não parecemos nos preocupar muito com os outros, sem perceber que, em algum momento, também seremos vítimas dessas avaliações.

Terceiro, as reformas trabalhistas operadas e pretendidas no Brasil tendem a fragilizar e ameaçar ainda mais às precárias condições de vida de milhões de brasileiros.

Quarto, os conglomerados econômicos e as multinacionais ditam as regras conforme os interesses na ampliação dos lucros, condicionando os humanos à condição de meras fontes de recursos exploráveis.

Quinto, essas mesmas empresas financiam campanhas políticas milionárias e depois cobram a conta na forma de contraprestações dos governos que passam a administrar os estados como meras agências garantidoras de contratos econômicos incluídos nas bolsas de valores.

O sociólogo italiano Maurizio Lazzarato (1955…) descreve como o mercado é manipulado pelo Estado para produzir as condições necessárias para que as grandes empresas dominem os recursos econômicos:

O mercado e a concorrência não são mecanismos naturais e automáticos, mas o resultado de uma construção que tem necessidade de uma multiplicidade de intervenções, notadamente estatais para existir e funcionar. Para poder laisser faire, é preciso intervir muito, e intervir, ao mesmo tempo, sobre as condições econômicas e sobre as condições não diretamente econômicas do funcionamento do mercado e da concorrência. É preciso intervir não sobre o mercado, mas para o mercado. Intervir para que os frágeis mecanismos da concorrência possam funcionar significa arrumar as condições, notadamente sociais, de seu funcionamento.[2]

Constatado o quadro, imediatamente me vem em mente algumas perguntas: Existem limites? Podemos fazer algo? O direito nos protege contra essas ameaças?

A resposta não é simples e tampouco esgotável. Meu objetivo é tão só apontar pistas que podem servir para quem quiser segui-las, ou, dito de outro modo, fomentar o debate. Essa análise tem como pressuposto o fato de o estado de exceção ainda não ter sido convertido, ao menos completamente, em regra nas relações trabalhistas, apesar de estar próximo disso[3].

Uma resposta jurídica ao problema passa pela discussão do poder disciplinar, também chamado de poder punitivo trabalhista, bem como da responsabilidade nas relações de trabalho. Esses são os fundamentos do problema e, nessa condição, sustentam os argumentos.

O poder punitivo ou disciplinar do empregador é descrito pela doutrina que o admite, como o direito exercido pelo empregador de manifestar a autoridade sobre a força de trabalho do obreiro, comandar suas atividades, ordenar os trabalhos e aplicar sanções disciplinares.[4]

A responsabilidade nas relações de trabalho está regulamentada pelos art. 186, 187 e 927 do Código Civil:

Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

[…]

Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.

A responsabilidade é constituída pelos elementos: conduta (ação ou omissão), resultado, nexo causal e, se for o caso de responsabilidade subjetiva, elemento subjetivo (dolo ou culpa).

No caso específico das avaliações dos entregadores de restaurantes, pizzarias, lanchonetes, bares e afins, não são imputáveis o sabor desagradável e a baixa qualidade dos ingredientes, pois não há ação ou omissão do entregador que possa dar causa a algum desses resultados. Já em relação aos atrasos nas entregas, o esfriamento da comida e a existência de detritos, a responsabilidade pode ser tanto do entregador quanto dos demais funcionários.

As estruturas do poder disciplinar e da responsabilidade nas relações trabalhistas valem para todos os empregados. O direito impõe a prova da responsabilidade para determinar à reparação ou compensação dos danos. Isso implica também que deve ser apurada a responsabilidade do avaliador, que também pode agir de má-fé pelos mais diversos fatores psíquicos.

Amauri Mascaro Nascimento (1932-2014) advertiu que o poder disciplinar não está limitado expressamente, por isso, depende de intervenção judicial para decidir se as medidas estão em conformidade com a Consolidação das Leis do Trabalho: “O controle sobre o exercício do poder disciplinar cabe à Justiça do Trabalho, podendo o empregado punido pedir mediante processo judicial a anulação da penalidade.” [5]

Há uma lacuna na legislação, deste modo a responsabilidade de impor limites ao poder punitivo do empregador é integralmente transferida ao poder judiciário, abrindo espaço para interpretações e decisões divergentes.

Em síntese, são esses os limites jurídicos à expansão do modelo biopolítico de curtidas (likes), insuficientes, como é evidente. Em outros termos, a promessa moderna de garantia pelo direito é insuficiente e, portanto, ineficaz frente às ameaças das técnicas contemporâneas.

Por isso, precisamos estabelecer uma Ágora para realizar os debates que interessam a todos nós. Hoje são os entregadores, mas não somos entregadores, então não nos preocupamos, um dia seremos nós, mas como não nos importamos com ninguém, não restará ninguém para se preocupar conosco, como advertiu o poeta alemão Bertold Brecht (1898-1956) no Intertexto[6].

Um limite, talvez eficaz, seria a proibição absoluta de uso desses instrumentos de avaliação como fundamentos para as punições de trabalhadores. Seria uma opção pelo humanismo que tutelaria a todos nós. Esse me parece o caminho menos pior.

Notas e Referências

[1] ORDAZ, Pablo. Os entregadores de comida são reféns do seu ‘like’. El País Brasil, São Paulo, 01 fev. 2019. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2019/01/23/economia/1548260634_440077.html>. Acesso em: 04 fev. 2019.

[2] LAZZARATO, Maurizio. O Governo das desigualdades: crítica da insegurança neoliberal. Trad. Renato Abramowicz Santos. São Carlos: EdUFSCar, 2011, p. 17.

[3] “A tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’ em que vivemos é na verdade a regra geral.” In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Obras escolhidas. 3. ed. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 226.

[4] NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de direito do trabalho: história e teoria geral do direito do trabalho: relações individuais e coletivas do trabalho. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 695.

[5] NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de direito do trabalho, p. 696.

[6] BRECHT, Bertold. Intertexto. Disponível em: <https://www.pensador.com/frase/NTczNjMz/>. Acesso em: 04 jan. 2019.